quarta-feira, 19 de junho de 2013

A Questão das Cotas nas Universidades e o Reparo da Escravidão

    Outros argumentos, além da suposta raça, tem sido usado para justificar as cotas raciais. Um dos mais comuns é o argumento do reparo da injustiça cometida pelo sistema de trabalho escravo. A sociedade brasileira deve reparar essa injustiça histórica que foi a escravidão, quando africanos foram trazidos de forma violenta ao país e depois, após a abolição, abandonados.
    Para não fugir ao debate vamos visitar, ainda que rapidamente, essa questão.
    A escravidão é a mais degradante forma de trabalho inventada pelo homem. Existe desde os primórdios da civilização quando os povos vencidos nas batalhas e guerras eram escravizados pelos vencedores e usados em seu benefício.  Desde o começo dos tempos históricos, como narrado na Bíblia, os Hebreus eram escravizados e vendidos.
    O trabalho escravo foi a base das civilizações gregas e romanas. A Atenas dos séculos 5 e 4 AC tinha sua  economia baseada no trabalho escravo. Na antiguidade clássica, Aristóteles em sua Política, sustentou que a escravidão era parte da ordem natural do mundo.
    No império romano a escravidão atingiu patamares espetaculares em termos de organização e regulação jurídica. No auge de Roma, a Itália tinha 9 milhões de habitantes dos quais 2 a 3 milhões (35 a 40%) eram escravos. O direito romano reconheceu e disciplinou  a escravidão. Esse monumental sistema escravagista somente declinou com as invasões bárbaras dos séculos V ao VIII.
    Na idade média, em grande parte da Europa, a economia baseada na escravidão foi substituída pelo sistema de servidão. A escravidão persistiu, no entanto, entre os estados germânicos do norte e experimentou florescimento importante entre os povos não cristãos que ocuparam as terras mediterrâneas entre os séculos VIII e XIII.
    Nos domínios muçulmanos da ilhas mediterrâneas e principalmente na Espanha, o trabalho escravo foi usado de forma intensiva na agricultura e na indústria. A Espanha Islâmica foi grande importadora de escravos cristãos entre os séculos VIII e X. Nos séculos XIII e XIV o Egito importou cerca de 10.000 escravos cristãos por ano.
    Entre os séculos X e XIII, durante a expansão dos genoveses e venezianos para a Palestina, Síria, Mar Negro e Balcãs, houve renovado interesse no comércio de escravos. Na península Ibérica o comércio de escravos somente declinou com a derrota e a expulsão dos mouros, sendo a escravidão substituída pelo sistema de servidão feudal.
    No começo do século XV, quando as caravelas portuguesas atingiram a costa da Guiné, a escravidão na Europa era insignificante, embora a lei romana que a reconhecia imperasse intacta. A escravidão existia na sua forma doméstica e na cidade do Porto, por exemplo, não chegava a 10% dos habitantes.
    Na África, a escravidão existia deste a antiguidade, mas como instituição menor, fruto das guerras entre os diferentes povos. Rotas de comércio de escravos através do Saara em direção ao mediterrâneo existiam deste o império romano. No século VIII, com a expansão do Islã esse comércio adquiriu proporções relevantes. À medida que o Islã se expandia em direção ao oriente, para a Índia e para o Mediterrâneo Oriental, mais intenso se tornou o comércio de escravos no norte africano, principalmente de mulheres e crianças. Estima-se que entre os anos de 800 a 1600 a comercialização de escravos atingiu números da ordem de 5.000 a 10.000 escravos por ano.
    A escravidão africana não era apenas voltada para a exportação. No século XV, no vale do rio Niger por exemplo,  durante o império de Songhay a escravidão interna suportava uma atividade agrícola intensiva de arroz e trigo, tanto para uso interno como para exportação. Escravos também foram usados nas minas de ouro do Sudão e nas minas de sal de Teghaza. Na África oriental, os escravos eram usados na agricultura em Malindi, Mombasa e no norte de Madagascar.
    Antes da chegada dos portugueses à África já existia o comércio intenso de escravos através do norte e do leste que já durava 6 séculos. Por estas rotas estima-se que foram mandados de 3,5 a 10 milhões de escravos africanos  para a Europa Ásia. A chegada dos portugueses inaugurou, a partir do século XV, uma nova rota no comércio internacional de escravos que, no entanto, não diferia substancialmente daquele que foi patrocinado pelos povos islâmicos do norte do continente.
    O interesse português na África era controlar, pelo mar, o comércio de escravos, de ouro e especiarias que se fazia predominantemente pelas rotas saarianas. O interesse primário era o ouro e apenas secundariamente eram escravos, marfim e especiarias. O destino final do comércio de escravos, por volta de 1444 era a Europa onde os escravos se destinavam aos trabalhos domésticos. Os portugueses também comercializavam escravos ao longo da costa africana, ente as diversas nações, em troca de ouro que levavam para a Europa.
    Somente no início do século XVI é que a escravidão  associada com a produção de açúcar se expandiu, inicialmente para as ilhas portuguesas de Madeira e Açores e posteriormente para o Novo Mundo. Na Europa continental a escravidão somente desapareceu por completo no século XVII, mas persistiu na América por todo o século XVIII e grande parte do século XIX.
    Por mais de 3.000 anos, dos tempos de Moisés ao século XVII, o instituto da escravidão não foi questionado, seja pelos homens de estado, seja por filósofos, teólogos, escritores ou críticos. Havia como que uma aceitação natural da escravidão.
    Portanto, a escravidão não é uma invenção brasileira. Foi antes um sistema de produção largamente empregado em grande parte do mundo. No Brasil a escravidão foi introduzida pelo colonizador português que primeiro usou como escravos os índios e os escravos africanos provenientes de Portugal. Somente a partir do século XVII a escravidão com negro africanos se intensificou e se tornou um grande negócio para a colônia. O Estado brasileiro somente passou a existir em 1822 com a independência que, a rigor ainda era uma continuação da casa real portuguesa. O Estado moderno brasileiro inaugura-se com a república em 1889. A abolição da escravidão índia no Brasil ocorreu com Pombal no final do século XVIII e a escravidão negra foi formalmente abolida em 1888. Atribuir ao Estado brasileiro e ao seu povo atual a responsabilidade pelo fenômeno da escravidão que foi universal e que graçou entre os estados africanos desde os tempos pré-romanos, é um exagero político e ideológico sem base histórica. Somente se justifica por meio de uma visão parcial e distorcida do passado.
    Neste diapasão se inclui a justificação das cotas raciais com base na escravidão passada. A implantação das cotas com essa justificativa produzirá situações irrazoáveis: como, por exemplo, dizer a um brasileiro pobre e branco que postule uma vaga na Universidade que, pelo prosaico motivo  dele descender possivelmente de um branco que conviveu com a escravidão negra no Brasil, a partir do século XVII, sem a ela se opor, ele tem menos direitos ou chances de ingresso na Universidade que seu colega de escola, tão pobre quanto ele, mas negro e pelo simples fato de que esse seu colega possivelmente descenda de um daqueles escravos. Qual a lógica dessa distinção? Seguramente nenhuma conforme demonstrado pelos fatos históricos. O sistema de cota racial não objetiva reparação. Ao contrário, objetiva promover uma desacreditada ideologia de raça entre os brasileiros.
    A Universidade, enquanto bastião da razão, não pode se render a esses argumentos falaciosos analisados acima, sob risco de se descaracterizar e se perder na sua função  de promoção da ciência e do humanismo.
    A escravidão foi e ainda é um ignomioso processo praticado contra seres humanos brancos, negros, amarelos e de todas as cores. Merece ser repudiada veementemente. Mas, os brasileiros brancos de hoje não a inventaram e nem são herdeiros diretos de que a inventou ou dela se beneficiou. Quem inventou a escravidão foi a humanidade e neste sentido somos todos, sem exceção, brancos e negros, todos culpados.

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