A Questão das Cotas nas Universidades e o Reparo da Escravidão
Outros argumentos, além da suposta raça, tem sido usado para justificar
as cotas raciais. Um dos mais comuns é o argumento do reparo da
injustiça cometida pelo sistema de trabalho escravo. A sociedade
brasileira deve reparar essa injustiça histórica que foi a escravidão,
quando africanos foram trazidos de forma violenta ao país e depois, após
a abolição, abandonados.
Para não fugir ao debate vamos visitar, ainda que rapidamente, essa questão.
A escravidão é a mais degradante forma de trabalho inventada pelo
homem. Existe desde os primórdios da civilização quando os povos
vencidos nas batalhas e guerras eram escravizados pelos vencedores e
usados em seu benefício. Desde o começo dos tempos históricos, como
narrado na Bíblia, os Hebreus eram escravizados e vendidos.
O
trabalho escravo foi a base das civilizações gregas e romanas. A Atenas
dos séculos 5 e 4 AC tinha sua economia baseada no trabalho escravo. Na
antiguidade clássica, Aristóteles em sua Política, sustentou que a
escravidão era parte da ordem natural do mundo.
No império
romano a escravidão atingiu patamares espetaculares em termos de
organização e regulação jurídica. No auge de Roma, a Itália tinha 9
milhões de habitantes dos quais 2 a 3 milhões (35 a 40%) eram escravos. O
direito romano reconheceu e disciplinou a escravidão. Esse monumental
sistema escravagista somente declinou com as invasões bárbaras dos
séculos V ao VIII.
Na idade média, em grande parte da Europa, a
economia baseada na escravidão foi substituída pelo sistema de servidão.
A escravidão persistiu, no entanto, entre os estados germânicos do
norte e experimentou florescimento importante entre os povos não
cristãos que ocuparam as terras mediterrâneas entre os séculos VIII e
XIII.
Nos domínios muçulmanos da ilhas mediterrâneas e
principalmente na Espanha, o trabalho escravo foi usado de forma
intensiva na agricultura e na indústria. A Espanha Islâmica foi grande
importadora de escravos cristãos entre os séculos VIII e X. Nos séculos
XIII e XIV o Egito importou cerca de 10.000 escravos cristãos por ano.
Entre os séculos X e XIII, durante a expansão dos genoveses e
venezianos para a Palestina, Síria, Mar Negro e Balcãs, houve renovado
interesse no comércio de escravos. Na península Ibérica o comércio de
escravos somente declinou com a derrota e a expulsão dos mouros, sendo a
escravidão substituída pelo sistema de servidão feudal.
No
começo do século XV, quando as caravelas portuguesas atingiram a costa
da Guiné, a escravidão na Europa era insignificante, embora a lei romana
que a reconhecia imperasse intacta. A escravidão existia na sua forma
doméstica e na cidade do Porto, por exemplo, não chegava a 10% dos
habitantes.
Na África, a escravidão existia deste a antiguidade,
mas como instituição menor, fruto das guerras entre os diferentes
povos. Rotas de comércio de escravos através do Saara em direção ao
mediterrâneo existiam deste o império romano. No século VIII, com a
expansão do Islã esse comércio adquiriu proporções relevantes. À medida
que o Islã se expandia em direção ao oriente, para a Índia e para o
Mediterrâneo Oriental, mais intenso se tornou o comércio de escravos no
norte africano, principalmente de mulheres e crianças. Estima-se que
entre os anos de 800 a 1600 a comercialização de escravos atingiu
números da ordem de 5.000 a 10.000 escravos por ano.
A
escravidão africana não era apenas voltada para a exportação. No século
XV, no vale do rio Niger por exemplo, durante o império de Songhay a
escravidão interna suportava uma atividade agrícola intensiva de arroz e
trigo, tanto para uso interno como para exportação. Escravos também
foram usados nas minas de ouro do Sudão e nas minas de sal de Teghaza.
Na África oriental, os escravos eram usados na agricultura em Malindi,
Mombasa e no norte de Madagascar.
Antes da chegada dos
portugueses à África já existia o comércio intenso de escravos através
do norte e do leste que já durava 6 séculos. Por estas rotas estima-se
que foram mandados de 3,5 a 10 milhões de escravos africanos para a
Europa Ásia. A chegada dos portugueses inaugurou, a partir do século XV,
uma nova rota no comércio internacional de escravos que, no entanto,
não diferia substancialmente daquele que foi patrocinado pelos povos
islâmicos do norte do continente.
O interesse português na
África era controlar, pelo mar, o comércio de escravos, de ouro e
especiarias que se fazia predominantemente pelas rotas saarianas. O
interesse primário era o ouro e apenas secundariamente eram escravos,
marfim e especiarias. O destino final do comércio de escravos, por volta
de 1444 era a Europa onde os escravos se destinavam aos trabalhos
domésticos. Os portugueses também comercializavam escravos ao longo da
costa africana, ente as diversas nações, em troca de ouro que levavam
para a Europa.
Somente no início do século XVI é que a
escravidão associada com a produção de açúcar se expandiu, inicialmente
para as ilhas portuguesas de Madeira e Açores e posteriormente para o
Novo Mundo. Na Europa continental a escravidão somente desapareceu por
completo no século XVII, mas persistiu na América por todo o século
XVIII e grande parte do século XIX.
Por mais de 3.000 anos, dos
tempos de Moisés ao século XVII, o instituto da escravidão não foi
questionado, seja pelos homens de estado, seja por filósofos, teólogos,
escritores ou críticos. Havia como que uma aceitação natural da
escravidão.
Portanto, a escravidão não é uma invenção brasileira.
Foi antes um sistema de produção largamente empregado em grande parte
do mundo. No Brasil a escravidão foi introduzida pelo colonizador
português que primeiro usou como escravos os índios e os escravos
africanos provenientes de Portugal. Somente a partir do século XVII a
escravidão com negro africanos se intensificou e se tornou um grande
negócio para a colônia. O Estado brasileiro somente passou a existir em
1822 com a independência que, a rigor ainda era uma continuação da casa
real portuguesa. O Estado moderno brasileiro inaugura-se com a república
em 1889. A abolição da escravidão índia no Brasil ocorreu com Pombal no
final do século XVIII e a escravidão negra foi formalmente abolida em
1888. Atribuir ao Estado brasileiro e ao seu povo atual a
responsabilidade pelo fenômeno da escravidão que foi universal e que
graçou entre os estados africanos desde os tempos pré-romanos, é um
exagero político e ideológico sem base histórica. Somente se justifica
por meio de uma visão parcial e distorcida do passado.
Neste
diapasão se inclui a justificação das cotas raciais com base na
escravidão passada. A implantação das cotas com essa justificativa
produzirá situações irrazoáveis: como, por exemplo, dizer a um
brasileiro pobre e branco que postule uma vaga na Universidade que, pelo
prosaico motivo dele descender possivelmente de um branco que conviveu
com a escravidão negra no Brasil, a partir do século XVII, sem a ela se
opor, ele tem menos direitos ou chances de ingresso na Universidade que
seu colega de escola, tão pobre quanto ele, mas negro e pelo simples
fato de que esse seu colega possivelmente descenda de um daqueles
escravos. Qual a lógica dessa distinção? Seguramente nenhuma conforme
demonstrado pelos fatos históricos. O sistema de cota racial não
objetiva reparação. Ao contrário, objetiva promover uma desacreditada
ideologia de raça entre os brasileiros.
A Universidade, enquanto
bastião da razão, não pode se render a esses argumentos falaciosos
analisados acima, sob risco de se descaracterizar e se perder na sua
função de promoção da ciência e do humanismo.
A escravidão foi e
ainda é um ignomioso processo praticado contra seres humanos brancos,
negros, amarelos e de todas as cores. Merece ser repudiada
veementemente. Mas, os brasileiros brancos de hoje não a inventaram e
nem são herdeiros diretos de que a inventou ou dela se beneficiou. Quem
inventou a escravidão foi a humanidade e neste sentido somos todos, sem
exceção, brancos e negros, todos culpados.